Os verdadeiros donos desta terra
A luta incessante de um povo pelo reconhecimento e demarcação de terras que sempre foram suas
Por Caroline Batista
“Olhar os povos indígenas, mas não só olhar, tenta entender o que eles sentem, porque só olhar você não entende, você não compreende. Pra mim é muito importante as pessoas tentarem entender os povos indígenas, não só falar, porque falar é fácil, mas fazer é difícil.” trecho da fala do cacique Kuaray Anildo Romeu, da Aldeia Tekóa Pyau, localidade de 15 hectares localizada na ressaca do Buriti em Santo Ângelo. Foto: João Pedro Melgarejo dos Santos
Os povos indígenas são considerados os primeiros a habitarem o solo brasileiro, viviam aqui antes mesmo da colonização, iniciada pelos portugueses no século XVI. Tão logo, os consideramos os verdadeiros donos dessas terras. Existiam em grande número e em diferentes grupos étnicos de norte a sul do país, convivendo entre si com seus costumes e maneiras. Plantavam para comer e fabricavam suas próprias ferramentas como meio de sobrevivência para caça, pesca e também para defesa. Não conheciam o capital nem mesmo o comércio, eram os únicos donos da terra, porém como traz o antropólogo Darcy Ribeiro na obra O povo brasileiro, o fato de os povos serem de variadas etnias fazia com que eles se diferenciassem entre si, se desconhecessem e logo se hostilizassem. A sociedade era formada por povos autônomos, autárquicas e sem divisão de classes.
A chegada dos portugueses fez tudo mudar; onde “tudo eram flores” passou a “ser espinhos”, os indígenas mal sabiam que a chegada dos europeus mudaria o rumo de suas histórias. O território que hoje corresponde o Brasil passou a ser partilhado por dois países, Portugal e Espanha, estes que apenas se preocupavam com a divisão e nada com os habitantes. “A gente percebe que o indígena sai de uma posição de total liberdade, para uma situação de liberdade vigiada ou restrição de acesso a certos locais. Como isso se dá? Chega aqui o imigrante e assume por sua conta ou por determinação e permissão dos governos a posse de territórios, ele apresenta uma coisa que o indígena nunca ouviu falar, o cercado, a propriedade que é o que está dentro daquela delimitação e o indígena não pode acessar” constata o museólogo Eder Ribeiro Oliveira, do Museu Antropológico Diretor Pestana. O “índio” (como foi chamado erroneamente numa referência às Índias, para onde se destinavam as embarcações chegadas ao continente americano), depois do pau‐brasil, como destacado na obra O povo brasileiro, passou a ser umas das principais mercadorias de exportação para a metrópole.
Os europeus viam esses povos como seres brutos que precisavam ser domesticados ou derrotados. Muitos se rendiam aos portugueses, os que lutavam geralmente acabavam mortos ou escravizados. Darcy Ribeiro ainda relata que além de serem superagressivos, os estrangeiros também eram capazes de atuar destrutivamente de diferentes formas. A população indígena então sofreu um genocídio, foi amplamente morta, principalmente pelas doenças infecciosas que eles trouxeram.
“Nesses territórios viviam pessoas, mas não se queriam essas pessoas ali, de uma forma bem simples de entender, não se queria essas pessoas para ter um melhor aproveitamento do território. Vamos deslocando-as para cada vez espaços menores e cada vez pedaços de terra menos interessante para o colonizador,” afirma Eder.
Ocupação das terras: um direito indígena
São consideradas terras indígenas – TI, aquelas de propriedade da União habitadas por povos indígenas que utilizam as mesmas para atividades produtivas, de preservação dos recursos naturais e para o mantimento da cultura de cada povo étnico. O direito às terras se configura como direito originário, ou seja, não depende do procedimento administrativo realizado para a demarcação de terras que é meramente declaratório. É um direito reconhecido pela Constituição Federal de 1988, assim como nela também é estabelecido o prazo de cinco anos para que as terras indígenas sejam demarcadas, porém tudo isso na teoria, já que as demarcações não são vistas como prioridades pelos governantes.
“O crescimento das propriedades rurais e urbanas faz com que o indígena fique cada vez mais restrito ao lugar que ele pode ter acesso, onde ele pode conviver e de onde ele pode prover seu sustento, na maioria das vezes em terras improdutivas, longe das nascentes de água e passagens de rios. No entanto a gente percebe o esforço deles em continuar sobrevivendo das formas que lhe são possíveis.” constata o museólogo Eder.
A população indígena diminuiu drasticamente durante a colonização e só voltou a aumentar por volta de 1960. Atualmente, segundo dados do IBGE, em 2010 foram registrados 896,9 mil indígenas, 36,2% em área urbana e 63,8% na área rural. São mais de 305 etnias, falando cerca de 274 idiomas e lutando pelo reconhecimento de suas terras. Também foram identificadas 505 terras indígenas, que representam 12,5% do território brasileiro (106,7 milhões de hectares).
“Antigamente a gente vivia mais perto da cidade, que era um acampamento. Mas como era um acampamento, não tinha como plantar e viver como nós queríamos, resolvemos que conseguissem uma área maior para nós, então conseguiram esses 15 hectares onde vivemos. Para nós morar longe da cidade é bom para nós mantermos a cultura, as crianças vivem na cultura deles, então nesse sentido, no caso da gente viver mais perto da cidade às vezes a gente se incomoda também”, destaca Kuaray Anildo Romeu, cacique da Aldeia Tekóa Pyau, localizada na ressaca do Buriti em Santo Ângelo.
Demarcação
O processo demarcatório serve para determinar os limites dos territórios ocupados pelos povos indígenas. A terra dá identidade a eles, por meio das demarcações. É dever da União proporcionar condições fundamentais para a sobrevivência cultural e física desses povos. Além de beneficiar os indígenas, as demarcações beneficiam a sociedade como um todo, contribuindo para a construção de um país cultural e etnicamente rico.
“Hoje em dia em todos os cantos do Brasil a luta que a gente mais enfrenta, não só eu, mas muito dos meus parentes é a dificuldades na demarcação das terras, não só os povos guaranis, mas todos os povos. Essa luta sempre segue, porque tem muitas aldeias que ainda não são demarcadas, que precisa ter demarcação para nós mantermos nossa cultura, para manter nossa tradição, nossas línguas, então nesse sentido, em todos os estados do Brasil os indígenas estão lutando pela demarcação,” relata Anildo Romeu.
As demarcações são direito dos povos indígenas e respeitar esse direito é respeitar a história de um povo e a história do país.
Luta por espaço
O futuro dos povos indígenas vem sendo visto como algo incerto, falta muito para que eles garantam suas terras, isso porque infelizmente é necessário passar por vários trâmites até que de fato a terra seja demarcada, envolvendo também governantes com interesses políticos maiores que, por vezes, são incapazes de assegurar a esses povos os direitos que eles possuem garantidos constitucionalmente.
“É o indígena que está na frente do comércio da cidade vendendo artesanato ou é o comércio que está em cima hoje do local que outrora o indígena tirava o seu sustento? São perguntas que a gente tem que se fazer. É claro que nós precisamos de agricultura, de pecuária, de indústria, de estrada. A sociedade não vive sem esses elementos e por muito tempo não vai conseguir se desfazer deles, mas a gente não vai conseguir fazer isso de uma forma equilibrada e respeitosa para com os habitantes que viviam aqui antes? Essa é a grande questão”, indaga Eder.
“A gente não sabe onde vai chegar no futuro, mas o meu futuro, o futuro dos meus povos é sempre manter a tradição, sempre ter a cultura nossa, lutar pelo o que é nosso, lutar pelas terras. Eu não sou o dono dessas terras, mas eu posso ser, porque os meus ancestrais viveram muitos anos atrás já no Brasil, então meu futuro é lutar, manter minha cultura, minha tradição, minha língua, com as crianças, canto, dança. Isso quero manter sempre, sei que muitas vezes a gente pensa no futuro tal aquilo, mas o meu maior tesouro é minha cultura e minha tradição”, finaliza o cacique.