O voo de sabiá
Por Dieison Engroff
Imagine-se saindo de sua cidade natal pela primeira vez, deixando para trás família, amizades e indo para uma aldeia indígena estudar e viver por quatro anos sem conhecer a cultura do lugar e o ambiente. Difícil, não? Agora imagine o contrário: uma indígena de 17 anos se afastando das origens, crenças, família, cultura e indo pela primeira vez para a metrópole estudar em uma das maiores universidades do Rio Grande do Sul.
Essa crônica existe e começou em 2008, quando Denize Letícia Marcolino recebeu um telefonema da mãe dizendo que havia sido selecionada na reserva de vagas para indígenas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e respondeu “eu vou!”
Da reserva kaigang do Guarita, que ocupa no noroeste gaúcho áreas de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco, Denize, que é carinhosamente chamada de Gónve (que significa sabiá) na sua aldeia, abriu as asas da coragem, enfrentou tanto as desaprovações familiares quanto a saudade ferrenha da mãe e partiu rumo a Porto Alegre para cursar Enfermagem. Quase cinco anos depois, com nota 10 no Trabalho de Conclusão do Curso, tornou-se a primeira universitária selecionada pelas cotas indígenas a receber o diploma pela instituição.
Para os kaigangs, a família é tão importante que seus integrantes costumam passar a vida inteira juntos. Poucos saem para cursar uma faculdade e, dos que vão, muitos voltam sem concluir os estudos. Como confirmam o Ministério da Educação (MEC) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), os índios são o grupo populacional com menor número de universitários. Denize prometeu que com ela seria diferente. E de fato, foi.
Depois de nove horas de viagem, chegou a Porto Alegre. O primeiro semestre foi tumultuado. A saudade da família e dos amigos apertava o coração. Desnorteada na cidade, tomava táxis para se locomover entre a Casa do Estudante e o Campus da Saúde. Gastava, assim, toda a bolsa, inferior a um salário mínimo. Nas aulas, não entendia perguntas feitas pelos colegas para ela. No restaurante universitário, estranhava a comida. “Eu comia pouco, emagreci cinco quilos. A comida tinha um gosto estranho, bem diferente. Também não era acostumada a sentar à mesa e a comer com garfo e faca”, relembra a indígena. Alguns alimentos foram experimentados pela primeira vez, como cachorro-quente e abacaxi. E Denize não falava com ninguém. “Eu sentia um misto de vergonha e medo, ficava pelos cantos, encolhida, feito um bichinho assustado. O primeiro semestre foi bem difícil”.
Passaram-se seis meses, e ela não desistiu. Aos poucos, os colegas conseguiram romper a timidez silenciosa da indígena. Explicaram como pegar um ônibus. O acompanhamento de monitores reduziu as dúvidas nas provas. A comida ficou mais palatável e, aos poucos, Denize foi se adaptando à vida na cidade.
Mas o teste decisivo aconteceu nas férias de julho de 2008, de volta à reserva. “Cheguei e chorei. Chorei muito mesmo. Era a minha casa, a minha vida. Minha mãe estava com muita saudade, mas só depois me confessou que, naquele dia, teve muita vontade de me dizer para ficar e desistir. Mas eu queria que os jovens da aldeia vissem que é necessário ir atrás das coisas para o nosso povo. Senão, nunca teremos autonomia, sempre dependeremos dos outros”.
Denize retornou aos estudos. E durante toda a faculdade, não repetiu nenhuma disciplina. O momento mais emocionante foi a formatura, em 2012. Momento histórico para Denize, sua aldeia e também para a educação. Momento em que a primeira indígena beneficiada pelo sistema de cotas da UFRGS concluía um curso. O fato foi aplaudido por cada um dos mais de mil presentes no Salão de Atos da instituição. Ao trocar o cocar amarelo e vermelho pelo capelo (o tradicional chapéu dos formandos), ao som da canção Índio do Brasil de David Assayag, Denize foi aplaudida de pé e abraçada pelos outros 38 graduandos.
Na plateia, a indígena recebeu a alegria e o prestigio da mãe, Ivone da Silva, do marido, Josias de Mello e dos cerca de 20 familiares e amigos que puderam ir ao Salão de Atos graças ao ônibus que a UFRGS dispôs para a locomoção.
Recém-formada, no dia 4 de setembro de 2012, a sabiá, à época com 22 anos, pousou na reserva, que esperava por ela com uma casa nova, construída ao longo dos anos em que esteve em Porto Alegre, e um novo desafio do tamanho dos 23 mil hectares da Reserva do Guarita. Ela sempre manteve a certeza, desde antes de entrar na UFRGS, que sua missão era ajudar seu povo. Desde então, Denize atua como enfermeira nos postos de saúde da reserva. “Decidi fazer Enfermagem por causa da situação precária da aldeia e da falta que um profissional de saúde fazia.
Hoje mudou bastante. Sou útil também por falar kaingang e traduzir as orientações médicas para as mães que não entendem como realizar o tratamento.”
Ela conta que a alimentação na aldeia, baseada no plantio de grãos, foi alterada com a introdução de produtos industrializados. Alguns idosos morreram por acidente vascular cerebral (AVC) e há muitos hipertensos e diabéticos. Para Denize, os índios devem continuar com a tradição do uso de ervas na cura das doenças, auxiliando o tratamento com os remédios.
A UFRGS dedica dez vagas por ano aos indígenas, além de reservar outros 30% das existentes para negros e para estudantes quem vêm de escolas públicas. São as lideranças das aldeias, em conjunto com autoridades da universidade, os responsáveis por escolher os cursos. A seleção ocorre de acordo com as necessidades das aldeias, mas saúde e educação costumam estar na preferência.