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NÃO CHAME DE BUGRE

Por Fabiane Madril

Isso é um conselho, para você não sair por aí compactuando com toda carga pejorativa que esse termo carrega, ao chamar indígena de “bugre”. Siga lendo para entender porquê.

Que toda história tem pelo menos dois lados, isso todo mundo sabe, mas mesmo assim, poucos se dispõem a ouvir mais que apenas uma das partes. A maioria se limita a consumir e assimilar apenas aquilo que está pronto, engessado, repassado por uma única voz, neste caso, transcrita em capítulos nos livros de história da escola. É necessário que exista uma guinada na construção do pensamento das pessoas em relação ao que diz respeito às diferentes etnias responsáveis pela ocupação do território regional e às maneiras de referir-se a elas e respeitá-las.  

Por isso, hoje, para que ninguém cometa mais injustiças por meio de uma “simples” nomenclatura, só porque “todo mundo fala assim”, iremos entender a origem do termo bugre e o que representa ainda hoje, com base nas versões do professor e político brasileiro Wilson de Matos Silva; do especialista da área de museologia Éder Ribeiro Oliveira, responsável técnico do Museu Antropológico Diretor Pestana, de Ijuí/RS; e do próprio indígena, representado pelo Cacique Kuaray Anildo Romeu da Aldeia Tekoá Pyau, de Santo Ângelo/RS.

 

Versão 1 – Origem na religião

Segundo o advogado Wilson de Matos Silva, que é indígena e coordenador do Observatório do Direito Indígena (Odin) no Centro-Oeste, a origem da palavra vem do francês bougre, que de acordo com o Dicionário Houaiss possui o primeiro registro no ano de 1172, e significa “herético”, que por sua vez vem do latim medieval (século VI) bulgàrus, ufa! Os búlgaros em questão, enquanto membros da igreja greco-ortodoxa, eram considerados heréticos, por professarem uma doutrina contrária ao que foi estabelecido pela igreja como dogma. Seguindo esse raciocínio, podemos entender que o uso do termo bugre para se referir ao indígena está intimamente ligado à ideia de não cristão, uma noção de forte valor pejorativo. Mas essa é só a ponta do iceberg!

    

“As significações de infiel e traiçoeiro somadas às modernas práticas econômicas e políticas da modernidade, encontram-se os pares preguiçoso/vagabundo e estrangeiro/inteiramente. Daí deriva uma matriz biológica deficiente/incapaz e violento/desordeiro, também presentes no imaginário sobre o bugre na sociedade brasileira”, destaca Silva, em publicação no site Dourados Agora, do Mato Grosso do Sul, disponível aqui. Interessante e inquietante, não? Informações que já provocam certa reflexão sobre o peso do termo e suas raízes religiosas e preconceituosas.

Versão 2 – Origem no extermínio

O museólogo Eder Ribeiro Oliveira, responsável técnico do Museu Antropológico Diretor Pestana, de Ijuí/RS, enfatiza uma outra relação direcionada à origem do termo, ligada aos BUGREIROS, nome pelo qual ficaram conhecidos os indivíduos especializados em atacar e exterminar indígenas brasileiros e que eram contratados pelos colonos imigrantes e pelos governos provinciais do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Segundo o especialista, a figura do bugreiro é uma das diversas atitudes e iniciativas que impactaram negativamente de forma direta os povos que aqui viviam antes desses fluxos migratórios mais intensos.

 

“O que acontecia? Os imigrantes contratavam uma pessoa para caçar os índios, e não era caçar para captura, era caçar para extermínio; essa pessoa recebia o pagamento conforme cada par de orelhas que ela apresentava, não importava se eram orelhas de infantes, adultos ou idosos. Cada par equivalia a um preço per capita, e esse era um dos métodos de se apoderar da terra”, destaca o especialista.  Chega dar arrepio!

 

Eu sei, só até aqui você se arrependeu umas dez vezes, no mínimo, de ter utilizado do termo para denominar algum indígena da sua cidade. Mas, vamos adiante porque chegou a hora de sabermos a versão do personagem mais importante desse texto e da história desse país, o nativo, o “índio”, o não bugre Cacique Kuaray Anildo Romeu.

Versão 3 – Origem na falta de conhecimento da realidade  

“Por não conhecer os povos indígenas é que as pessoas chamam disso, ‘ah aquele bugre’; falam que você não é civilizado, que vive na selva, mas se chamar de bugre muita gente vai se sentir ofendida, nós somos indígenas, temos etnia”. Para o chefe da Aldeia Tekoá Pyau, de Santo Ângelo/RS, a origem do termo está na falta de conhecimento das pessoas sobre a realidade e essência indígena. Ao invés de fazer contato, visitas, pesquisas mais aprofundadas as pessoas fazem o quê? Se detêm às informações rasas do senso comum. Lembra do que eu discuti lá no início do texto, sobre limitação ao consumo do que já vem pronto? Pois é. Olha a que ponto esse comportamento chega, interferindo e propagando o pré – conceito, a forma como as diferentes etnias se relacionam.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Tem os alemães, os italianos, e tem os indígenas. Por que não podemos ser chamados por nossa etnia? De Guarani, Kaingang, Charrua. Por que bugre? Parem de chamar de bugre, respeitem o índio como ele respeita o branco”. (ROMEU, Kuaray Anildo, 2018).

 

Viu como não é “só jeito de falar”? Todos temos um legado, uma história, um nome e devemos ser respeitados e chamados por tal. Além disso, os indígenas evoluíram, assim como todas as demais etnias, como o mundo e a própria tecnologia. Eles não são figurantes, nem vivem de passado. Eles são protagonistas de suas próprias histórias de vida, têm lutas e questões atuais pelas quais vivem e buscam o melhor, sempre pensando de forma coletiva e não individual, sem esquecer sequer do meio em que vivem, a mãe natureza, que tudo provém. Temos muito a trocar, aprender, compartilhar.

Pense nisso, incorpore empatia e repasse o quanto puder o verdadeiro significado desse termo, para não sentir vergonha alheia quando sair com aquele amigo, aquela tia ou colega de trabalho que insiste em chamar indígena de bugre. Conto contigo!

Cacique Kuaray Anildo Romeu, da Aldeia Tekoá Pyau, em Santo Ângelo. Foto: Lara Nasi

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