Herança indígena e missioneira na música do Sul
Por Crystian Carniel
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Ruínas jesuíticas de São Miguel. Foto: reprodução Portal das Missões
“Cada vez que canto em qualquer parte deste mundo, minha voz de touro arranca leivas de capim, escarvo da terra herança índia e missioneira que os meus avós um dia deixaram para mim.”
Pedro Ortaça
Como já dizia o chiru velho Pedro Ortaça, as heranças indígenas e missioneiras foram passadas através de gerações. Mas o que significa ser um missioneiro? Ser missioneiro vai além de ser um habitante das regiões onde se estabeleceram as antigas missões jesuíticas. Para muitos, ser missioneiro é carregar consigo a história de batalhas e de tradições que formaram a cultura gaúcha. As letras e melodias missioneiras surgiram com inspiração de uma miscigenação cultural, que além de dar origem às músicas, formou os primeiros Gaúchos.
A origem cultural
“Originalmente, esses gaúchos não se identificavam como espanhóis nem como portugueses, do mesmo modo como já não se consideravam indígenas, constituindo uma etnia nascente, aberta à agregação de contingentes de índios destribalizados pela ação missionária ou pela escravidão, de novos mestiços de brancos e índios desgarrados pela marginalidade, e de brancos pobres segregados de suas matrizes. Esses eram os gaúchos originais”. Neste trecho do livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, o autor Darcy Ribeiro explica a formação do “primeiro” gaúcho.
Para o professor e pesquisador Luiz Mario de Araújo esta formação deu origem ao “gaúcho primitivo, que seria praticamente um indígena; foram um povo livre, pois não eram aceitos pelas tribos, nem pelos imigrantes”.
Através desta formação podemos definir que o gaúcho tem influência indígena por ser fruto de uma miscigenação de indíos com os europeus colonizadores e africanos escravizados, sendo assim também influenciado pelos próprios imigrantes, o que o torna um ser multicultural que vai ter a mesma herança índia e missioneira que o Pedro Ortaça expõe em sua música.
Como estes gaúchos primitivos vagavam, assim como os indígenas, sem fixação, matavam o gado para seu sustento e sobreviveram através da caça e da natureza. As vestimentas, assim como um tropeiro, eram muito parecidas com as que o gaúcho tradicionalista de hoje usa, assim como outros traços que fazem com que o gaúcho que vivia nestas terras no passado seja retratado: o mate, o cavalo, as vestes e então a música desenvolvida com o passar dos tempos.
Algumas das formas de entretenimento para as suas noites solitárias era o violão, que mais tarde passava a ser substituído pelo acordeom, por ser mais fácil de carregar e ainda resistia às variações climáticas, que acabavam por desafinar e estragar os violões.
O termo “gaúcho” origina-se do árabe Chaouch, tropeiro, ou seja, livre para perambular pelos pampas. Essa definição consta no livro O autoctonismo: teoria e cenário, do autor Luís Flodoardo Silva Pinto.
As missões jesuíticas se fizeram por todo território Brasileiro e também na Argentina, Paraguai e Uruguai. As missões surgem com o princípio de catequizar os indígenas e não ressaltar as suas raízes. Os contatos entre missionários e indígenas não foram pacíficos na grande maioria, traçando nesta história confrontos que extinguiram grande parte da população indígena. No Sul, as missões duraram mais tempo, deixando construções e marcas mais permanentes na cultura regional.
A música tradicionalista missioneira
Os indígenas têm influência na música missioneira, mas também foram influenciados pelos diferentes povos das missões. No filme A Missão, é retratado o momento em que um missionário se encontra com os índios e, através da música, faz com que os mesmos percebam que ele está em paz, e assim apresenta o seu instrumento, a flauta, para os indígenas. Neste sentido, de mostrar novos instrumentos, os missionários faziam contato com os indígenas e aos poucos os catequizavam, introduzindo também novos elementos a sua cultura, inclusive os musicais.
Os gaúchos que antes eram livres e assim como os indígenas não tinham localização, com o passar das gerações e a chegada de novos povos e culturas, passaram a se fixar e construir um lar. Devido às marcas deixadas nesta terra e toda sua história, estas localizações eram mais do que simplesmente um local no qual eles resolveram residir. Para muitos gaúchos as definições de ser “missioneiro”, “fronteiro”, “sulista”, entre outras, vai além de território; carrega consigo a história do lugar que muitos tiveram que batalhar para conquistar.
O território é que define o termo que é utilizado, o ser missioneiro é alguém que desenvolveu uma “raíz” nesta terra e que acredita que carrega consigo a história deste povo. A luta diária e o jeito de viver do índio que também foi o jeito de viver do gaúcho durante alguns anos, foram transpostos nas canções. Por isso também é comum ouvirmos canções em que são citadas falas em guarani ou em outras línguas indígenas, além de palavras consideradas regionais, pois são misturas da fala guaranítica com as demais línguas.
“Os diferentes povos indígenas, por não deixar nada escrito e também não desenvolver músicas individuais, pouco puderam contribuir para a formação musical missioneira”. É o que avalia o professor e pesquisador da Unijuí Paulo Evaldo Fensterseifer, que também é integrante do Grupo Peabiru, dedicado à música missioneira e cujo nome lembra a estrada que ligava os guaranis aos incas. O professor relata ainda que “o pouco que foi repassado dos indígenas é o que uma geração passou para a outra e assim consecutivamente, e suas músicas não são singulares, sendo a maioria para rituais, ou para diversão, com a interação de toda tribo e não individual, como as músicas que hoje ouvimos”.
A música missioneira vem então de instrumentos que não faziam parte até então do cenário indígena, e que foram sendo introduzidos e utilizados de forma diferente pelos indígenas, pois o propósito deles é de ritmar. O músico e estudioso Gerson Antunes conta que “o violão, por exemplo, quando utilizado pelos indígenas, não tem a mesma afinação, nem o mesmo sentido, porque sua utilização é com sentido de produzir um ritmo. Sendo assim, poucos dos instrumentos podem ser reconhecidos como indígenas na música gaúcha missioneira, como chocalhos e instrumentos de percussão. E como não existem registros, não se pode provar que estes surgiram mesmo dos indígenas ou quiçá foram utilizados para o desenvolver a música missioneira”.
A representação
A representação feita através da música tradicionalista, quando se fala em “missioneiro”, tenta retratar esta formação cultural gauchesca que se fez através de toda essa história de lutas e influências guaraníticas, espanholas, portuguesas, árabes, entre outras. Missioneiro nada mais é do que um gaúcho tradicionalista que se identifica com esta região. Condiz muito também com a vida indígena, e com seus costumes e tradições.
A música tradicionalista tem seus representantes, um deles é o grupo Os Tapes, que ganhou relevância no território regional, pois expressava bem a herança indígena na música, trazendo nas suas canções instrumentos não muito populares pelos tradicionalistas e, nas vestes, a forma com que os primeiros gaúchos vestiam-se, destacando-se entre os demais. Desta forma, a música ajuda a desmistificar estereótipos, pois a nossa cultura é dinâmica, assim como a cultura indígena. E se transformou com o passar dos anos, adaptando-se às tecnologias.
Na música tradicionalista temos quatro cantores que ficaram conhecidos como “troncos missioneiros”, são eles: Noel Guarany, Cenair Maicá, Jayme Caetano Braun e Pedro Ortaça. Em suas músicas, estão presentes anos de tradições e costumes, herdados por ancestrais que habitaram a região missioneira. Sua origem e estilo musical é o que mais defende uma raiz missioneira. Apesar de não existirem registros que comprovem que os povos indígenas influenciaram a música nativista, os versos transpõem a cultura que deles foi herdada através das gerações.
A história da música e da cultura gaúcha continua sendo desenvolvida através das gerações. O que muda é que continuamos em evolução, sempre acrescendo conhecimento e cultura. É o que chamamos de dinâmica entre os povos.
O importante é lembrarmos que a música missioneira não é a música indígena e sim uma maneira que os gaúchos tradicionalistas acharam de retratar a cultura e contar um pouco da história dos que nos antecederam. Está presente principalmente nos festivais nativistas, quando são desenvolvidas, através da referência e inspiração dos povos e tradições, músicas que tendem a desenrolar para um lado mais cultural, contando histórias e mantendo a cultura índia e missioneira viva entre nós.